Contos de Alguém para todos Vós

"If one is not half mad, how can one give birth to a dancing star?" (Nietzsche)

quarta-feira, outubro 11, 2006

E mais um conto...

Ruinas

Projecções do que se passava lá dentro encontravam-se reflectidas nas paredes vestidas de vitrais coloridamente sagrados. O eco da música que timidamente ampliava essas mesmas paredes, era agora uma sonoridade agradável, uma melodia de fundo, que já não pertencia ali, mas a outra dimensão longínqua ou, pelo menos, durante mais algum tempo. A fragrância sentida era uma mistura de essências de baunilha, canela, de rosas selvagens, de ânsias, voluptuosidade e de enleio.
Não era um local isolado ou longe do centro da cidade, situava-se a escassos metros de uma das principais entradas. Embora acessível e visível a qualquer condutor ou caminhante, passava despercebido a qualquer intenção de cometer qualquer acto de invasão curiosa. Tratava-se, portanto, de um esconderijo perfeito para a condição em que se encontravam aqueles dois. Excepcionalmente, o diálogo usual que tantas vezes se havia gasto, não acontecera. Somente palavras soltas foram proferidas. Somente algumas palavras ousaram profanar o ambiente quente, ardente, perfumoso e afectuoso. E era vê-los deitados sobre uma toalha de mesa antiga, levada e esquecida para ali, há tanto tempo atrás. Teria servido de revestimento daquela mesa de madeira do lado esquerdo do altar. Apesar dos anos e do uso ter passado por ela, não estava nem gasta nem manchada, como que tivesse sido fiada com o propósito de ser utilizada por estes dois seres tão afastados, sem que, no entanto, pudessem ser apartados um do outro.
E lá continuavam, uma vez mais, abraçados, agachados, deitados, colados, aninhados, acarinhando-se, beijando-se, tocando-se, unindo-se, sem uma palavra, sem um pensamento, com toda a emoção, com todo o desejo, apenas escutando os sons do momento, com todo o prazer que provinha daí. Os seus corpos transformavam-se numa massa homogénea mas proporcionalmente desigual. A sua mente esvaziava-se de coisas vulgares ou relevantes, importando apenas as coisas que ambos estariam a experimentar. Era algo de muito carnal, que impulsionado para algo mais intenso, se transformava no êxtase ansiado e ali vivido.
Um raio de luz e de som provocara o cessar de toda aquela movimentação libertária prazerosa. Tudo começara a ruir, paredes, altar, bancos, portas. O pó instalara-se definitivamente, invadindo a atmosfera com um sentido de catástrofe. Havia sido uma bomba que fora lançada, errando o alvo em muitas dezenas de quilómetros. Havia sido uma bomba, que lançando o pânico, a desordem, as trevas, pusera fim à ordem, ao calor, à serenidade deleitosa. Pedra a pedra, madeira a madeira, tudo era naquele momento um aglomerado de cinzas e de destruição, sobraram apenas as vigas que sustinham aquele santuário. Sobrara apenas os restos de algo, levianamente inconsequente, que alguém iria cometer, num espaço de tempo próximo. Não chegou a fazer nada.
Apressadamente, embrulhara-se na toalha, tacteando o caminho de saída, nem se dando conta que algo faltara, que algo ficara lá dentro, que esse algo estaria irremediavelmente perdido. Começara a correr para se salvar, sem saber que condenada já estava ela, sem saber que corria para um evitável abismo. De súbito lembrara-se dele. Ele ficara lá dentro, soterrado, talvez já sem vida. Tinha que se salvar, procurar auxílio. Começara novamente a correr. E a correr já ia também a sua mente.
Através das persianas corridas do escritório, impunha-se um céu cinzento e infausto. Havia de passar pelos Correios para que o plano surtisse o efeito desejado. Por vezes há que agir sem elaborar meticulosamente uma estratégia. Tal era o anseio com que a sua mente voava, que à saída do edifício, pela porta principal, que dava para a rua dos quatro semáforos, não reparando no sinal vermelho, atravessa a rua desatentamente. Uma paragem brusca, mas que não chegara a tempo, desenlaça-lhe um fim trágico. Viria a falecer duas horas depois, nas urgências do hospital distrital. Um quarto vazio de sentimentos, de cor, de vida, sem ele.
Arrependera-se. Não era assim que queria que acontecesse. O fim não poderia ser tão trágico. Apesar de ser um fim possível, útil até, pois deixaria de ser arrastada para junto dele, deixaria de se sentir impelida para o ver, para lhe falar ou tocar, algo persistia em alicia-la para junto daquele ser, único, maléfico e angelical.
Tinha que salvá-lo. Tentaria salvar-se. Tentaria salvar um amor perdido.
Dirigiu-se lá para dentro. Ele encontrava-se por debaixo de umas vigas de madeira, perto do que havia sido o altar. Alçou uma por uma, tapando o nariz e a boca por causa da poeira que teimava em levantar-se. Ainda respirava. Ainda estaria a tempo de redimir-se de uma acção, de um pensamento de há pouco tempo. E pensar que o tinha abandonado. E pensar que conseguira, embora por breves instantes, resistir-lhe, virar as costas e prosseguir com a sua vida. Tentara um começar de novo. Tentara um viver como o de antes. Tentara apagar as memórias sentidas. Tentara ignorar as emoções suas e as partilhadas. Ainda respirava. Levantou-o, com muito cuidado. Abraçou-o, pôs os braços dele à sua volta e encaminhou-se para uma das saídas, com ele de olhos agora semiabertos. Agarrou o seu braço com uma força extraordinária, com um tacto determinado mas gentil, em jeito de agradecer tal acto de salvamento, tal compaixão, tal dedicação, tal amor que insistia em durar para sempre. Ela nada disse, nada fez, mas pensou. Pensava naquele instante que tudo aquilo era um eterno Princípio e Fim, que tinha que ser vivido, ao qual não poderia nunca escapar. Aceitava. Já não iria tentar escapar sorrateiramente, fingindo nada sentir, nada desejar, nada ser.
Enquanto faziam o caminho de regresso, dirigindo-se para o hospital, um carro parou. A viagem durara apenas cinco minutos. Agora estava completamente fora do perigo de perder a vida, de perder o sorriso, de perder aquela que o entendia e aceitava, aquela única, aquela a quem sempre tinha negado o sentir para além do imediato. Já na cama, hospitalizado e adormecido, sonhava, nem ele sabia com o quê. Apenas sabia que não estava sozinho, ao seu lado, lá estava ela, a única, e sempre para sempre.
As projecções do que se costumava passar lá dentro encontravam-se então dissimuladas, nos destroços, como que fantasmas pairando no ar, donde se poderia observar algumas paredes vestidas de vitrais outrora coloridamente sagrados, daquele sítio agora feito ruínas.

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